quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Pouca terra e muito chão

Dezassete e quarenta e oito, comboio com destino a Porto – São Bento. Cheguei à estação em cima da hora, só tive tempo para comprar o bilhete. O último cigarro antes de entrar foi adiado para primeiro cigarro depois de sair. Entro na última carruagem, já está tudo um bocadinho cheio. É impossível arranjar onde me sentar sozinha. Avisto duas senhoras, ambas já com alguma idade, posicionadas frente a frente num lugar de quatro. A uma só lhe vejo o carrapito bem enrolado no topo da cabeça. À outra, também com carrapito, vejo-lhe a saia e a camisa com o mesmo padrão floral. Vejo também que não consegue chegar com os pés ao chão e que a saia, na posição sentada, lhe sobe mais do que a religião lhe permite. Apesar do cenário, pensei que seria pacífico e que não haveria “embicanços” com os meus calções dois palmos acima dos joelhos.

Quando me sentei, o diálogo já ia avançado. Percebi que vinham de uma cerimónia, encontro ou ritual. Falavam de alguém, falavam de um homem que “não mandava nada, não é ele que manda” e, diziam, quem manda “está acima de nós”. Até aqui, nada de extraordinário. Depois começaram a falar de alguém que tinha deixado “de ir a todos e nem a Vizela ia” porque não tinha dinheiro, não trabalhava. “Não trabalhava porque não queria”, já lhe tinha ido pedir dinheiro. Só lhe deu uma vez, “foda-se e não leva mais. Que vá trabalhar! Não trabalha ela, nem ele. Andam a pedir gente nos pavilhões, ela que vá lá!” – dizia a senhora de camisola cinzenta e saia preta, agora já estava em condições de a ver melhor. Tinha-me sentado ao lado dela. Esta usava óculos de aros metalizados e chegava com os pés ao chão. A outra acenava afirmativamente e também ia acrescentando pormenores à história. Os caralho e foda-se fluíam por uma questão de pontuação. E iam olhando para mim à espera de reacção ao “as mulheres de hoje em dia querem viver à custa dos homens, foda-se para a chulice" e às variações dessa frase juntavam a segurança social e os rendimentos mínimos. Não percebi se me estavam a acusar ou a alertar. No entanto, mantive-me calada, puxei o mais que pude os calções e tapei o que pude com o saco. A tal, a que não trabalhava, já tinha três filhos. Não eram do mesmo pai e um estava numa instituição. “Não sei porque continuam a fazer filhos, as crianças não têm culpa. Nascem para sofrer!” – tive que lhes dar razão. 

Mais uma paragem numa estação ou apeadeiro e entra uma senhora à procura de lugar. Senta-se ao lado da que traz o padrão floral em fundo azul celeste. O marido segue-a, mas não tem lugar e recua. A senhora do padrão oferece-se para sair e vagar o lugar. Mas a gentileza é recusada quando percebem que esta não vai sair na próxima: “Então, qual é o problema? O seu homem ficava ao pé de si. Agora não tenho homem. Mas quando tinha, ele gostava de estar ao pé de mim. Era muito fraco, não valia nada, mas gostava de estar ao pé de mim.” Sorrimos todas com ela, mas, ainda assim, a mágoa era evidente.

Com aproximação do destino, levantaram-se. Despedidas feitas, a de cinzento ficou para trás e disse-me: Olhe, você desculpe qualquer coisinha! Peço desculpa por algumas coisas que dissemos aqui, está bem? Agora tenho que ir para lhe dizer alguns “améns”, ela não pode usar saias tão curtas!

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